Resistir é Biblioteconomia

[Em resposta ao texto: BARROS, Moreno. Desisti da biblioteconomia: por que trabalhar em bibliotecas não vale mais a pena. Revista Biblioo, v. 3, n. 10, 18 out. 2013. Disponível em: <http://biblioo.info/desisti-da-biblioteconomia/>. Acesso em: 23 out. 2013.]

Persevera, per severa, per se vera

Mudar de carreira atualmente não é algo tão estranho. Exemplos e casos de pessoas que migram de suas áreas de formação, que trocam empregos promissores por desafios, que buscam novas e melhores oportunidades são fáceis de encontrar. A busca pela autorrealização lá no topo da pirâmide parece ser inerente a toda e qualquer pessoa, independente de sua formação ou profissão.

Pode-se afirmar que as pessoas procuram a Biblioteconomia por ser fácil, mas isso é um clichê tão batido quanto dizer que quem faz pedagogia é porque gosta de crianças. Dizer que a Biblioteconomia é fácil e legitimar e reforçar um status quo que denigre, subverte e desprestigia a área. Falar que passar pelas agruras de se tornar um bacharel, não somente durante o percurso dentro de sala de aula, mas também fora quando a todo o momento temos que justificar muitas vezes a familiares, amigos e a nós mesmos o porquê de nossa escolha é, no mínimo, depreciar o esforço de muitas pessoas que passaram por este percurso.

Além disso, dizer que algo que é fácil não garante grandes compensações financeiras é no mínimo ingenuidade. Não preciso citar casos de pessoas que ganham uma bela bolada sem muito esforço. E isto também não vem ao caso e fugiria do ponto aqui abordado.

Ninguém deveria fazer um curso de graduação pensando em fortuna em retorno financeiro. Evidente que todos precisamos pagar nossas contas e ainda sobrar alguma coisinha pra, digamos, tomas uma cervejinha com os amigos ou fazer aquela viagem dos sonhos. Mas se a lógica da acumulação de bens materiais se sobrepor ao verdadeiro ideal de uma ciência, esta não existiria.

Existem pessoas frustradas em todo lugar, porém toda e qualquer área, profissão, hobby é algo para apaixonados. Viver é algo para apaixonados! E escolher uma área simplesmente porque esta parece ser mais fácil não é algo que faz muito sentido. Tudo pode ser fácil ou difícil, só depende de como encaramos as situações.

Outro dilema reside no fato de que escolher uma profissão nunca é fácil. Se estivermos no início de nossa vida adulta podemos ter o receio de errar. Se estivermos já com um pouco mais de idade podemos ter medo de largar “o certo pelo duvidoso” (eis mais um clichê). Se estivermos um pouco mais a frente muitas vezes pode bater aquela hesitação de sair do comodismo muitas vezes duramente conquistado.

A questão salarial seja pela baixa remuneração, seja por ser pouco ou nada condizente com nosso grau de formação não é um privilégio de bibliotecárixs. Temos greves estourando a todo o momento onde um dos pontos sempre é a questão salarial. (Só um adendo: alguém aí já viu greve de bibliotecárixs?). E existe muitas vezes a diferença entre o que se ganha e o que realmente vale, em outras palavras, a famosa disparidade em salario real e salário nominal.

E não é culpa de nossa formação que consideremos pouco o que ganhamos. Existe toda uma intricada série relações implícitas e explícitas que podem explicar este fato, mas tomarei por base apenas um ponto: biblioteca não gera capital financeiro direto. E num contexto onde “tempo é dinheiro” (estou abusando dos clichês? Talvez ainda não), porque perder tempo e investir em algo que não dá retorno financeiro a curto ou médio prazo? Aquela intricada rede que eu falei ali em cima pode ser explorada através deste aspecto. Mas este também não é o objetivo deste texto.

A grande questão é: vale a pena tentar convencer as pessoas a não largar a área e abandonar essa profissão? Como eu gosto de brincar com minhas alunas e meus alunos, a única certeza na Biblioteconomia é o depende. Se a pessoa está infeliz, insatisfeita, não gosta e não quer, isso é simples: vá procurar sua turma. Literalmente, no caso da sala de aula.

A Biblioteconomia não é um lugar para pessoas frustradas, rabugentas, que adoram reclamar de que nada funciona e de que “tá tudo errado!”. Agora pare por um momento e reflita no porque você escolheu esse curso, porque escolheu esta profissão, porque desta área, se você tem o “perfil” (clichê combo x5) para atuar nesta área.

Ser Bibliotecário ou Bibliotecária (sim! com “B” maiúsculo) é mais do que mexer com livros e atuar em Bibliotecas. É mais do que fomentar o hábito (não gosto dessa palavra) e o gosto (essa sim acho legal) pela leitura. É mais do que fazer hora do conto. É mais do que passar pela avaliação do MEC. Existe um mundo… Não… Mundos não: existem universos (tipo paralelos e tal) a serem descobertos, e muitos de nós (e aqui faço um mea culpa) estamos ainda preocupados com questões científico-técnico-burocráticas.

E as pessoas (nem todas jovens, pelo menos não na idade) idealistas que se formam? E aqueles talentos natos e muitos outros desenvolvidos? Muitos deles se perdem, ou migram, buscando novos horizontes para alçarem voos maiores, longe da rigidez e frieza dos grilhões que nos são postos desde a graduação. Outros vão sendo abatidos, dia após dia, estágio após estágio, emprego após emprego, tem suas forças exauridas com uma maestria de dar inveja – ou causar revolta.

E essas pessoas que desistem, elas amam bibliotecas? Tanto quanto há quem ame e deixe de amar qualquer outra coisa. Existem os que gostam e os que não gostam. E existem xs tantufaz. Conceitos, teorias e técnicas não são para ser aplicadas ipsis litteris. São abstrações, representações. Temos de nos apropriar e adaptá-las a cada realidade. Atuar como profissional não é reproduzir. Podemos encarar como exercícios de abstração, tentativa e erro.

O ponto é que para se trabalhar em bibliotecas não precisamos gostar delas, muito menos de livros, e desconfio que nem de ler (mas só desconfio). Para se trabalhar em bibliotecas devemos gostar de pessoas (amar aqui iria soar meio estranho). E é isto que talvez crie um certo dilema durante e após a formação: estamos na área das ciências humanas, dentro das ciências sociais aplicadas, mas o que mais dá visibilidade são pesquisas sobre tecnologia?

Desistir de uma profissão faz diferença sim! Pense que ao final de um curso superior, qualquer curso, é realizado um juramento. Evidente que ninguém sai da colação de grau com um anel no dedo (ou até saem!), mas uma vez ouvi de uma professora na graduação que a partir do momento que nos formamos, uma parte de nós se torna coletiva, seremos membros de uma classe profissional, e que prometemos “[…] tudo fazer para preservar o cunho liberal e humanista da profissão de Bibliotecário, fundamentado na liberdade de investigação científica e na dignidade da pessoa humana“.

Devemos nos atentar um pouco melhor ao que cada uma dessas palavras significa e pensar se realmente, ao mudar de área ou profissão, se ao desistir de trabalhar em uma biblioteca e formos desempenhar outras funções, aparentemente fora do contexto tradicional, se estamos deixando de lado tudo o que aprendemos e nos tornamos ao longo do curso. E deixo também uma questão existencial: você até pode sair da Biblioteconomia, mas a Biblioteconomia sairá de você?

“Bibliotecárixs são subervisvos. Você acha que elxs estão apenas sentadxs em suas mesas, quietxs e tal. Elxs estão tramando uma revolução cara. Eu não mexeria com elxs”.
– Michael Moore

[Atualizado alguns (me perdoem os outros) erros ortográfico-gramaticas em 15/04/2014]

9 comentários sobre “Resistir é Biblioteconomia

  1. Lucas, concordo em grande parte com o que foi dito, e digo mais: se alguém que assume a postura de conhecer tão bem a biblioteconomia brasileira a ponto de promover cursos para mostrar aos bibliotecários o que eles devem fazer com as tecnologias e o que estão fazendo de errado, por exemplo, eu diria que minha inteligência está sendo insultada ao dizer que desistiu da biblioteconomia e que ela deve ser impulsionada (somente) pela paixão, fato diametralmente oposto à arrecadação de bens através de cursos na área.

    E vou além: concordo plenamente com os dois últimos parágrafos do seu texto, que relembram o juramento que fizemos na colação de grau e do cunho humanista da profissão.
    Eu amo a minha profissão e tenho um apreço especial pela tecnologia, mas identificando que tudo de mais inspirador que vejo não tem condições de ser implementado, às vezes pela classe e pelo perfil dos bibliotecários com quem trabalhamos, às vezes pela gerência da unidade de informação que estamos inseridos ou mesmo às vezes pelas condições financeiras e estruturais, devo abandonar minha profissão por “falta de vontade” ou decepção só? Ainda mais em bibliotecas universitárias (que são os carros fortes de inovação), públicas (que mais precisam da gente) ou escolares (que constroem o futuro)?

    Acho muito triste e preguiçoso. E acho que pessoas que tem um nome tão conhecido e que podem servir de inspiração para outras deviam ter vergonha de dizer esse tipo de coisa.

    • É este tipo de reflexão mais crítica e contundente que eu gosto de fomentar Laura. É sempre bom saber que tem pessoas que, concordando ou discordando, conseguem e estão com vontade de aprofundar a discussão. Obrigado pelas palavras!

  2. Gostei muito do texto de resposta.
    Temos que lembrar ainda que nossa profissão tem conselho de classe, é reconhecida formalmente, temos concursos que só podem ser preenchidos por quem cursou biblioteconomia. Isso seria uma dádiva para muitas outras áreas.
    O que você falou de as bibliotecas não gerarem lucro diretamente é uma coisa que penso já há algum tempo. Em um livro sobre sustentabilidade ecológica, o autor falava desses espaços (biblioteca, museus, centro culturais) como crucial para uma sociedade mais ‘educada’ e fora um pouco dessa cultura de consumo.
    Enfim, acho que a profissão em si é muito boa, mas na área ainda prevalece muitos ranços difíceis de serem quebrados, o que pode acabar desanimando algumas pessoas. Se o profissional não gosta de trabalhar com pessoas, vai se frustrar mais rápido ainda.

    • Sou a favor da profissionalização mas eu sempre tenho receio disso descambar, como às vezes acontece, para o corporativismo. Temos alguns benefícios mas fazemos jus a eles? Este é meu questionamento quanto a isso.

      E é para combater estes ranços que eu gosto sempre de levantar discussões e debates. São difíceis mas não impossíveis. E se nunca começarmos, eles permanecerão para sempre.

      Agradeço pelas palavras Nadia.

  3. Lucas, belezinha?

    antes de tudo o texto publicado na biblioo é uma tradução quase ipsis litteris de um original publicado no library journal. Não sei se leram a parte textual por completo (leram?), mas está lá indicado no fim que é uma tradução adaptada. Adaptada porque eu incluo ou excluo algumas sentenças para ficar mais acessível a quem quiser ler em português do brasil. O título e o subtítulo são apenas chamariz para que o texto tenha maior repercussão (funcionou né? ó nós aqui).

    Ou seja, não é um texto meu. Obviamente compactuo com o conteúdo do texto original, que se não entendi errado, defende exatamente a NÃO desistência da profissão. Você entendeu o contrário? Também acho que não. Logo, não vejo o seu texto como uma resposta (seria para a autora original), como um contraponto, mas sim uma repetição do que o texto traduzido já apresentava.

    Haters gonna hate. Mas você e a Laura não são meus nemesis. “Reflexão mais crítica e contundente” é o que eu gosto de fomentar também. O tipo de coisa que só gente com boa auto-estima é capaz de fazer: criticar e oferecer respostas para os problemas.

    abraços fraternos, em vc e Laura

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